O mundo depois de nós, tempestade solar e o significado psicológico do nosso fascínio por temas apocalípticos.


      Hoje vou compartilhar com vocês um pouco da minha opinião sobre o filme “O mundo depois de nós” e quais foram as respostas que eu encontrei quando fui estudar sobre o nosso fascínio pelo apocalipse. Essa pesquisa teve início no começo do mês de março, quando o debate sobre a possibilidade de a tempestade solar danificar os satélites e deixar a humanidade desconectada, sem internet, invadiu minhas telas. Atenção, contém spoilers e insights.

     A narrativa do filme, dirigido por Sam Esmail, acompanha Amanda Sandford, interpretada por Julia Roberts, uma das poucas atrizes que, na minha opinião, poderiam viver esse papel. Isso porque Amanda é uma personagem difícil, complexa e, como o filme deixa claro desde a primeira cena, amargurada com o mundo. Para mim, Roberts tem carisma de sobra para compensar o que falta à personagem e nos manter interessados em acompanhar seu drama.

     Cansada da vida, Amanda decide viajar com a família e organiza tudo sem antes consultar sequer seu marido, Clay, personagem vivido por Ethan Hawke. Tudo através do site “Deixe o mundo para traz”, homônimo do título do filme no idioma original. Durante a viagem de carro para a cidade de praia onde alugaram uma casa, acompanhamos a família Sandford interagindo com vários dispositivos tecnológicos: Amanda passa instruções para uma colega de trabalho por telefone; Clay dirige e manuseia o rádio do carro; O filho mais velho, Archie, escuta música no fone e a filha mais nova, Rose, assiste a um episódio da série Friends.

    Na minha opinião, essa cena retrata a forma como a tecnologia contemporânea é inserida de forma intensa na vida familiar e ajuda a criar o contraste e a tensão quando, algumas cenas depois, as comunicações são cortadas. Rose e Archie são os que aparentemente mais sofrem com a falta de comunicação nesse momento inicial. Ilustrando a ideia de como as gerações mais novas estão dependentes da vida online.

    Apesar de inquieta com a falta de comunicação, é só quando dois estranhos aparecem a sua porta numa noite que Amanda fica visivelmente incomodada. Sua tentativa de deixar o mundo para traz é frustrada quando agentes do mundo chegam a sua casa. A construção do filme leva os expectadores a passarem boa parte do filme questionando se os estranhos falam a verdade ou não, afinal somos apresentados a eles só mais tarde, enquanto que acompanhamos Amanda e Clay desde o início. Aos poucos percebemos que Clay já está confortável e parece confiar que os estranhos são quem dizem ser: os donos da casa. É Amanda que resiste e isso levanta questionamentos, por que ela ainda tem dúvidas? Essa pergunta abre uma série de possibilidades interpretativas, algumas exploradas no episódio do podcast A Psique Em Palavras que aborda esse filme. Mas nenhuma dessas possibilidades se encaixa no foco deste texto, portanto não serão discutidas aqui.

    A falha nas comunicações é apresentada aos personagens como um ataque cibernético terrorista. E a princípio é isso. Nada mais. Uma série de desventuras acontece em tela, mas a ameaça continua apenas no campo da desinformação e da falta de comunicação e do acesso à internet. Isso pode ser entendido como uma crítica ao momento que estamos vivendo, devido à grande quantidade de informações que somos bombardeados diariamente, não sabemos mais o que é verdade ou não. E quando mais precisamos confiar uns nos outros, mais desconfiamos. Mas isso também é assunto para explorarmos em outro momento.

    O foco é como a notícia sobre uma remota possibilidade de a tempestade solar danificar os satélites e deixar o mundo off-line desencadeou uma espécie de frenesi. Seria isso a exposição da nossa dependência da vida em redes artificiais? Ou será o fenômeno chamado fomo, fear of missing out (livre tradução: medo de ficar de fora)? Seria o receio de viver o cenário de O mundo depois de nós? Será que a intensidade das reações está em ordem ou se trata de um exagero da nossa parte? Denunciando, assim, nosso fascínio por temas apocalípticos?

    As razões psicológicas que podem estar por traz desse fascínio me levaram até Edward Edinger, renomado analista junguiano que, um pouco antes de sua morte em 1998, aprovou a publicação de seu livro “Arquétipo do Apocalipse: Vingança divina, terrorismo e o fim do mundo“. Esse livro foi publicado recentemente no Brasil pela Editora Vozes. Nessa obra, Edinger analisa o que, para ele é o  mais famoso livro sobre o fim do mundo de todos os tempos, O Livro da Revelação, também conhecido como Apocalipse de João.

    Para Edinger, é fácil reconhecer a existência de um arquétipo do apocalipse como a força motriz do nosso fascínio pelo tema. O autor inicia o primeiro capitulo explicando que arquétipo é um padrão e uma agência dinâmica simultaneamente. Isso implica que, como um padrão podemos reconhece-lo de maneira objetiva e falar dele, mas como uma agência dinâmica o encontramos como sujeito, como se fosse uma entidade, com intencionalidade e aparente consciência (p.2).

     Logo nas primeiras páginas, o autor explana, de forma objetiva, o que ele acredita ser o significado psicológico do apocalipse: “significa o memorável evento da vinda do si-mesmo para a realização consciente”. 

    Para quem não é familiarizado com os conceitos da Psicologia Analítica, eis aqui uma rápida e simplória explicação: para Carl G. Jung o centro da consciência é chamado de ego, o complexo do eu. Porém, para ele, a consciência não se limita ao ego, quem dirá a psique em sua totalidade! O si-mesmo é o arquétipo da totalidade, ao mesmo tempo o centro e a circunferência psíquica. Como disse Heráclito Pinheiro é, simultaneamente, um conceito empírico e um postulado. A existência de uma realidade viva e atuante em mim! 

    Devo advertir ao leitor que, se desejar compreender verdadeiramente estes conceitos, estude-os na fonte. No livro “Aion estudo sobre o simbolismo do si mesmo, Carl G. Jung explica muito bem sobre os fenômenos que ele chamou de Ego e Si-mesmo. Caso ainda não se sinta preparado para aventurar-se na fonte, indico a excelente apresentação da Psicologia Analítica desenvolvida pelo historiador e analista junguiano Heráclito Pinheiro em seu livro: Psicologia Junguiana: uma introdução.

    Voltemos ao nosso assunto! No livro O arquétipo do apocalipse, Edinger diz que “as imagens do apocalipse para o individuo significam desastre apenas se o ego for alienado e antagônico em relação às realidades que o self está trazendo à consciência. É aí então que o arquétipo do apocalipse deve manifestar-se catastrófico. Mas se o ego está aberto e coopera com a vinda do self, as mesmas imagens podem significar, como Jung diz, uma ‘ampliação do homem para o homem total’”. 

    Ou seja, nós somos fascinados pelo tema pois ansiamos a revelação, a renovação da vida. Mas sentimos como um evento catastrófico pois não estamos abertos a cooperar com a transformação eminente. Quantos de nós falamos que desejamos viver transformações, desejamos mudança no ano novo, e mesmo assim, resistimos com afinco quando o universo escancara as portas da revolução? 

    Passamos anos reclamando de um emprego ou uma relação sem sentido, mas ainda sim, quando os perdemos, tentamos de toda forma nos agarrar ao velho, àquilo que já estava gasto, para evitar entrar em contato com o desconhecido? 

    Seria o enredo dos filmes uma mensagem para nós enquanto sociedade? Sobre o quanto estamos desejosos de mudança mas ao mesmo tempo relutantes para mudar? Assim como o filme entregou um final aberto para que nós refletíssemos sobre as questões ali apresentadas, eu termino meu texto com essa pergunta para que cada um de nós reflita sobre como estamos recebendo em nossos corações as metamorfoses que vida nos apresenta.


 

Aqui estão listados os livros citados com o link para que você possa comprá-los:

 

Você também pode ouvir meu podcast A Psique em Palavras, onde explorei esse tema junto com alguns convidados:

Espero que tenha gostado dessa minha análise, 

Com Carinho