Até onde estamos dispostos a negar nossa experiência em prol da construção mental que um dia formulamos?
Esse texto é fruto das reflexões que vivi durante minha sessão de terapia hoje. Compartilhei com minha analista uma decisão recente: tranquei minha segunda pós-graduação em Psicologia Analítica. Percebi que, embora os professores fossem extremamente competentes e rigorosos, a sombra da instituição, para mim, se manifestava como algo excessivamente racionalista e até mesmo combativo.
Ressalto o “para mim” e opto por não citar nomes, porque acredito profundamente que cada pessoa vive uma experiência única. No entanto, a minha vivência estava se tornando limitada. Ao invés de me sentir enriquecida e inspirada, comecei a temer falar sobre psicologia. Cheguei à conclusão de que nenhum conhecimento vale o custo da minha espontaneidade, da minha voz, da minha alma.
Minha analista disse algo importante: muitos vivenciam a Psicologia Analítica, mas poucos acessam a Psicologia Complexa. Embora ambas sejam manifestações do mesmo campo, elas ocorrem em dimensões distintas. Uma é mais acadêmica e dogmática; a outra é viva, numinosa e profunda.
Essa reflexão me remeteu imediatamente ao livro que escolhi para inaugurar meu clube do livro, um espaço acolhedor e terapêutico que montei selecionando a dedo cada convidada, e durante essa seleção fui guiada somente pela minha intuição. E deu muito certo! Só tenho gratidão por tanto! Outra hora compartilho mais sobre o clube, já que na semana que vem, faremos nosso último encontro para discutir exatamente esse livro.
O livro em questão é o romance realista-mágico “Practical Magic”, escrito por Alice Hoffman em 1981 e adaptado para o cinema em 1998, com Sandra Bullock e Nicole Kidman (aliás, uma sequência vem ai em 2026!). A história acompanha Sally e Gillian Owens, irmãs que pertencem a uma linhagem de bruxas com mais de 200 anos, criadas por tias que trabalhavam com bruxaria, sério, o ganha pão delas era fruto dos trabalhos mágicos e embora a cidade toda projetasse tudo que desse errado como culpa daquela família, depois que o sol se retirava, as mulheres da cidade batiam na porta das Owens em busca de feitiços de amor.
O ponto central que conectei com minha sessão de terapia está na personagem Sally Owens. Órfãs, ela e a irmã cresceram na casa das tias assistindo de perto a magia desenrolar. Episódios mágicos aconteceram a ela e ela inclusive testemunhou um feitiço funcionando diante dos seus olhos! Mas mesmo assim, ela escolheu se fechar para a magia.
E me pergunto: quantas vezes também nós fechamos os olhos para a magia ao nosso redor?
Tudo em prol do paradigma vigente.
Mas a história já nos mostrou que, sempre que nossa arrogância ofuscou nossa visão, ou seja, sempre que acreditávamos termos esvaziado todo o mistério da natureza e creímo-nos seus soberanos, uma descoberta chegava e colocava todo nosso modelo de realidade em cheque.
A magia talvez não aconteça da forma egóica, ou caricata, como vemos em filmes e séries, com varinhas mágicas e desejos imediatos atendidos, mas ela existe.
Está no sonho premonitório, no nome que nos vem à cabeça e logo em seguida o telefone toca e quando atendemos, para nossa surpresa, é o dono do nome que responde, quase como se tivesse sido invocado. A magia está nos sussurros da nossa intuição e em outras sincronicidades que por maiores que sejam nossos esforços enquanto espécie humana de esvaziar o mundo de sua beleza e magia, ela resiste.
Como disse Liz Greene:
“Muitos dos temas estudados por Jung misturam diferentes esferas da experiência humana: a arte serve como um instrumento mágico, símbolos astrológicos fornecem insights psicológicos, imagens dos sonhos abrem portas para experiências religiosas disfarçadas de loucura, Deus e o inconsciente tornam-se indistinguíveis, a medicina dá as mãos aos rituais xamânicos, e a sexualidade é um rito mágico sagrado.”¹
Há mais de 100 anos o psiquiatra suíço deu um salto de fé no desconhecido e mergulhou nas profundezas do seu inconsciente. O ouro que ele trouxe de volta consigo – a descoberta da realidade da psique – vem transformando a nossa visão do que é realidade, já que nada é, tudo está de acordo com o ponto referencial de quem observa. Como disse o próprio Jung:
“Limito-me a contemplar embevecido e respeitoso as profundezas e alturas da natureza psíquica. Seu universo inespacial encerra uma quantidade indizível de imagens que foram sendo acumuladas por milhões de anos de desenvolvimento dos seres vivos e se condensaram organicamente. Minha consciência é como um olho que penetra nos espaços mais longínquos, mas é o não eu psíquico que preenche este espaço com imagens inespaciais. Estas imagens não são pálidas sombras, mas fatores psíquicos muito poderosos. O máximo que podemos fazer é interpretá-los mal, não, porém, roubar-lhes a força, negando-as. Além dessa imagem gostaria de lembrar o espetáculo do céu noturno estrelado, pois o equivalente do mundo de dentro é o mundo de fora; e assim como atinjo este mundo por meio do corpo, atinjo aquele mundo por meio da psique.
Não gostaria, por isso, de lamentar as complicações da psicologia trazidas por minhas contribuições, pois a ciência se enganou redondamente toda vez que achava ter descoberto como eram simples as coisas.”²
Que possamos abrir nossos olhos para a magia real e profunda que vive em nós e ao nosso redor.
1 Greene, Jung’s studies in Astrology, Prophecy, Magic, and the Qualities of Time, p. 5.
2 Jung, CW4, ¶764, 765.