*Contém spoilers e insights!
No texto de hoje eu vou falar um pouco sobre a dinâmica familiar dos Ushers e como as relações que cultivamos tem o poder de influenciar varias esferas das nossas vidas.
Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro” (JUNG, OC 7/1, §78).
Essa frase de Carl Gustav Jung invadiu minha mente assim que terminei os oito episódios da série dirigida por Mike Flanagan, inclusive é a produção de despedida da parceria do diretor com o streaming da Netflix. A série A Queda da Casa de Usher apesar de levar o nome de um conto de Edgar Allan Poe publicado em 1839, é construída a partir de uma mistura de várias histórias do autor que formam uma obra inédita. Quase que uma carta de amor do Mike Flanagan ao Edgar Allan Poe.
Mas para além do título, o conto também confere à série sua estrutura central: Dois irmãos, Roderick e Madeline Usher, precisam se haver com a decadência de sua casa, pois em ambas as histórias, a linhagem da família morrerá com eles. Só que no conto os irmãos são os últimos Ushers existentes e estão ambos lutando contra uma doença terminal, enquanto na série Roderick tem seis filhos e uma neta.
Na série Roderick conversa com o promotor de justiça Auguste Dupin, que está tentando fazer com que a família Usher seja responsabilizada por seus crimes, em uma casa caindo aos pedaços. A forma dele prender a atenção do promotor e a dos expectadores é que o milionario promete ao promotor que ao final da história irá revelar como ele é o culpado pelas mortes misteriosas de toda sua prole.
Com exceção da neta de Roderick, Lenore, todos os seus descendentes são pessoas complicadas que possuem dificuldades alarmantes em seus relacionamentos pessoais:
Próspero:
É o irmão mais novo e não tem amigos ou uma relação amorosa significativa com nenhuma pessoa. No segundo episódio, que termina em sua morte, a primeira aparição dele em cena é nu em sua cama, com outras 4 pessoas nuas dormindo ao seu redor. Há brinquedos sexuais espalhados ao redor. O que ele tem de mais próximo é um rapaz e uma jovem que o seguem para todo lado e o ajudam no seu plano de criar uma festa exclusiva. Em um café da manhã na sua casa, Próspero quer saber onde estão seus ovos, o amigo responde que ninguém liga, são só ovos. Próspero pega um garfo e segura ameaçadoramente na garganta do amigo enquanto explica quão especiais e raros são os ovos que ele procura para o seu café. Essa cena nos mostra como ele se relaciona com o mais próximo que tem de amigos. Na base do desrespeito e medo.
Camille:
É a responsável pelas Relações Públicas da Fortunado e também da família Usher por ser muito inteligente. Durante seu tempo em cena não conhecemos nenhum amigo ou relacionamento significativo. Tem dois assistentes pessoais que fazem o trabalho investigativo para ela, inclusive em uma cena, quando está investigando a irmã Victorine já que Camille suspeita que Victorine seja a informante dos Federais no caso de Dupin contra a familia. Camille até chega a dizer para seus assistentes: subornem e ameacem se necessário, o que expoe para o expectador que ela não tem problemas em ultrapassar a ética e cometer inclusive crimes. Mais tarde sabemos que dentre as funções que os assistentes devem performar está satisfazer Camille sexualmente. Nem as relações intimas dela tem intimidade ou estão desconectadas do trabalho.
Leo:
Se intitula como desenvolvedor de videogame, mas, na verdade, ele paga para pessoas desenvolverem para ele enquanto ele faz uso abusivo de substâncias químicas. Mora em um apartamento com o namorado que parece ser uma boa pessoa e fornecer para ele uma relação saudável, mas trai o namorado quando ele não está em casa. Leo parece ser um dos poucos a manter vínculos com os irmãos, pois tem uma boa relação com Próspero e Camille, e em um ponto da série até com o irmão mais velho, Frederick. Protege a todo custo sua dependência química, encontrando formas de justificar seu uso, estabelecendo até regras com o namorado, sendo uma delas a exigência de que o namorado jamais deveria contestar o uso ou pedir para que diminua. Em determinada cena, Leo pensa que pode ter entrado em surto enquanto estava sob os efeitos de drogas e matado o gato do namorado. Ao invés de falar a verdade e arriscar ter seu vicio escrutinado, ele parte em uma jornada para substituir o animal e proteger seu vício.
Victorine:
É médica e parece ter um relacionamento saudável com sua namorada e parceira profissional Alessandra. De todos, ela é a quem tem o trabalho mais macabro, pois opera cirurgias e perde os pacientes chimpanzés regularmente. Pelos corredores do trabalho correm os boatos da sua prática profissional anti ética e mais tarde ficamos com a impressão de que a união de Victorine e Alessandra tinha como pano de fundo o interesse de Victorine pelo projeto desenvolvido por Alessandra. Inclusive, Victorine mata a namorada quando foi frustrada por ela.
Tamerlane:
É a mais “nova filha legitima”, isto é dentro do casamento de Roderick com sua primeira esposa, Annabele Lee. Tamerlane produz um programa de saúde e exercício do qual seu marido é a estrela principal. Ao longo da série ficamos sabendo que ela vivência sua sexualidade através da contratação de prostitutas que devem encenar um jantar rotineiro com o marido enquanto ela assiste. O que aparentemente ela gosta de assistir é a intimidade entre eles, já que ela, aparentemente, não consegue vincular no mesmo nível com o marido, pois o vê apenas como um produto, empregado que ela escolheu a dedo para seu projeto de carreira.
Frederick:
Parece ser o mais funcional, com uma boa relação com a esposa Morella e a filha Lenore. Ao longo da série passamos a entender que ele só busca a aprovação do seu pai, o resto é quase como se ele apenas encenasse o afeto, pois por baixo das aparencias podemos perceber como, na verdade, ele se vincula através de sentimentos de posse para com a esposa e a filha, e não do amor. O que fica bem claro nos últimos episódios.
Apesar de não termos acesso a infância dos 4 filhos de Roderick fora do casamento com Annabel Lee, a série nos mostra cenas do final dos anos 1970, quando Roderick e Annabel ainda eram casados, e dialogos do ultimo episódio iluminam o que pode ter acontecido para os filhos terem se constituido da forma que eram.
Em determinada cena, Roderick fala para Dupin que quando ele e Annabel se separaram, ela tinha a custodia das crianças e Roderick não suportava isso. Ele conta que esperou eles cresceram um pouco e então passou a bombardea-los com dinheiro e o que poderia ser a vida deles se ficassem com o pai. Quando finalmente escolheram o pai, Roderick diz que viu nos olhos dele que qualquer coisa de bom que eles tivessem herdado da mãe, tinha sido morta pelo dinheiro.
Essa cena é seguida do encontro de Roderick com o fastasma de Annabele Lee na igreja após o funeral dos filhos, na qual ela diz a ele:
“ ‘Ele é rico’, é o que eu falava para as pessoas quando me perguntavam como você os tirou (os filhos) de mim. ‘Ele é rico’ e você não entende o que essa palavra significa. Eles eram jovens e eles só conheciam apetite. E ai você aparece dizendo ‘aqui, venham comigo e empaturrem-se’. Como eu poderia competir com isso? Mas você não os alimentou, não é? Você os matou de fome. Cada vez menos eles voltavam a ser o que eram até que um dia estava vazios. Eles foram drenados. E ai você começou a enche-los, a supri-los com… Com o que? O que você tinha pra supri-los? Porque você não era rico, era? Esse tempo todo eu pensei que você era um homem rico mas agora eu entendo você. eu olho pra você e vejo você. A pobreza que tem dentro de você”
Então fica claro que riqueza nesse contexto não é sobre dinheiro, mas sobre amor, empatia, respeito, carinho, bons valores e principios. E que Roderick não tinha alimentos psicológicos e emocionais nutritivos e saudaveis o suficiente para compartilhar com os filhos, muito pelo contrário o que ele tinha era tóxico e os adoeceu.
“Nossos cérebros são construídos de forma a garantir que seguiremos as crenças e valores daqueles que nos rodeiam” – Matthew Lieberman
Malcolm Gladwell, em seu livro “Outliers“, disse que são necessárias 10.000 horas de prática para se tornar um especialista em alguma coisa. Supondo que gastamos apenas 20% do nosso tempo pensando em outras pessoas e em nós mesmos em relação aos outros, nossa rede neural padrão estaria ocupada pelo menos três horas por dia. Em outras palavras, nossos cérebros trabalharam 10.000 horas nos tornando especialista em relações sociais antes de completarmos dez anos de idade.
O cérebro de uma criança é programado para crescer e amadurecer, mas leva mais de duas décadas para terminar essa tarefa, sendo assim o ultimo órgão do corpo a maturar anatomicamente. Ao longo desse periodo as maiores figuras da vida de uma criança – pais, irmãos, avós, professores e amigos – podem se tornar ingredientes ativos no desenvolvimento cerebral. Como uma planta se adaptando a um rico ou pobre solo, o cérebro de uma criança se molda para caber na sua ecologia social, se acomodando particularmente ao clima emocional do seu ambiente, que é forjado pelas pessoas que povoam a vida dessa criança.
O cerebro humano é desenhado para transformar-se em resposta a experiencias acumuladas.
Michel Meaney, um neurocientista da universidade McGill de Montreal, descobriu que filhotes de ratos que foram criados por mães devotadas que lambiam e nutriam muito, ficavam menos estressados quando confrontados com uma situação desconhecida ou estressora. Filhotes que não eram tão bem atendidos por suas mães tinham mais dificuldade em lidar com labirintos, por ex, o equivalente ao teste de QI humano. Já os piores resultados dos experimentos vieram de filhotes que foram separados prematuramente de suas mães. O trauma da separação ativou genes de proteção o que deixava seus cérebros vulneraveis a inundações toxicas de moléculas de estresse. Eles cresceram para se tornarem ratos facilmente assustaveis.
O equivalente humano da nutrição e as lambidas são a empatia, atenção, cuidado, respeito e o toque físico. Isso significa que a forma que nossos pais nos trataram ativou ou não os genes que eles nos passaram através do DNA. E a forma como trataremos nossos filhos vai modular por sua vez a forma como os genes deles serão ou não ativados. Esse achado sugere que pequenos atos de cuidados com o estilo de parentar/maternar podem ter consequencias duradouras e que as relações tem o poder de orientar as formas que o cerebro vai se adaptar.
Os relacionamentos são um dos aspectos mais importantes de nossas vidas. As pessoas que estão mais ligadas socialmente à família, aos amigos ou à sua comunidade são mais felizes, fisicamente mais saudáveis e vivem mais tempo, com menos problemas de saúde mental do que as pessoas que estão menos ligadas.
Não é apenas o número de amigos que você tem, e não é se você está ou não em um relacionamento sério, mas é a qualidade dos seus relacionamentos íntimos que importa. Viver em conflito ou em um relacionamento tóxico é mais prejudicial do que ficar sozinho.
Aqui estão listados os livros citados com o link para que você possa comprá-los:
- Outliers – Malcolm Gladwell
Você também pode ouvir meu podcast A Psique em Palavras, onde explorei esse tema: